Como lidamos com o fim das coisas que nunca acabam
A grande serpente que morde a própria cauda, as vezes representada como um dragão que simboliza o ciclo infinito da vida. Imagino ela como um colossal dragão cor de arco-íris, formando uma espiral ao redor de tudo. Ela representa o fim e o começo, mas sinto que é um pouco difícil pensar além do fim das coisas, ver um começo por trás de um término, apesar dele sempre estar ali.
Um dos fins mais marcantes da minha vida foi o fim de um desenho animado, um anime chamado Cowboy Bebop. Ele conta história de quatro caçadores de recompensa que vivem em um futuro de expansão espacial. A cada episódio os tripulantes da nave Bebop vão atrás de uma pessoa procurada em troca de uma recompensa e vemos como se desenrola a história dessa pessoa. Mas o show é mais sobre os tripulantes, que acabam tomando o lugar de espectadores para as histórias das pessoas procuradas. A cada episódio vemos eles lidando com o fim da história que acabaram de acompanhar, seja voltando para a rotina e tentando esquecer uma cena de violência e morte ou simplesmente comendo ovos para não pensar nas pessoas queridas que disseram adeus logo antes.
O que o desenho mostra, ao final, é como cada uma daquelas pessoas lida com o seu próprio passado e o fim das fases das suas vidas. É como acompanhar um processo de auto luto, mas com o passar dos episódios você também acaba se identificando com esses personagens e se apegando um pouco, por isso é tão difícil quando o personagem principal morre. É triste, mas esperado, como se o desenho estivesse o tempo todo te preparando para aquele fim.
Só acontece uma coisa com o desenho, por ser uma obra tão boa, você não tem a opção de só esquecer e seguir em frente. Acredito que a maioria das pessoas passa por algo similar, a sensação de não conseguir simplesmente esquecer algo importante que passou e assim carregar aquela memória consigo. Sinto que carrego uma parte daquele desenho comigo, tudo o que vivi e assisti até o momento me moldam como indivíduo.
Isso vale tanto para os desenhos que assisti quanto para o momento em qual vivo, nasci bem no final de um século cheio de inovações, sinto que vi o fim de tantas coisas na minha vida que já é estranho pensar no fim como essa coisa concreta. Algo que realmente não existirá mais depois, quando penso no fim da minha vida, no fim do relacionamento que estou agora ou de algum em que já estive, não consigo mais ficar tão triste. Parece que com o tempo a gente se dessensibiliza com o fim das coisas, afinal o fim faz parte da vida. Estamos envoltos por um infinito círculo de começos e fins, mas as vezes é difícil colocar em perspectiva que tá tudo bem as coisas acabarem. Me sinto no meio dessa gangorra, relativizando como me sinto sobre o fim para que esteja mais bem preparado, mas sinceramente, nada me quebrou mais do que o fim de outro desenho chamado hora de aventura. É uma história bem longa que acompanhei desde 2011 e só fui terminar de assistir em meio a pandemia, talvez pelo fato de o mesmo desenho me acompanhado por tanto tempo, já que eu só via um episódio de vez em quando. O fim dele pareceu o fim de muito mais coisas, não era só o fim da história dos personagens que estava acontecendo, mas o fim da minha história com aquele mundo encantado que me fez experienciar tantos sentimentos diferentes.
Não sei se importa a qualidade de algo, não sei realmente se esses desenhos são bons de verdade ou se você que está lendo isso ao menos gosta de desenhos, mas sinto que existe um valor imenso em algo que nos acompanha por muito tempo, seja um desenho animado, um relacionamento ou animal de estimação. Mesmo que tudo esteja fadado a acabar, encara o fim das coisas pode ser bem complicado. Por isso quando penso no fim das estruturas do mundo que estamos vivendo, fico com dois corações. Se observar com calma, dá pra ver a maneira como estamos vivendo na terra não vai se sustentar por muito tempo, já dizem os cientistas e ativistas que o aquecimento global vai se tornar cada vez pior, até consumir a nossa civilização. É assustador pensar nisso, o que torna a coisa toda meio distante e o que sobra é só o recurso de voltar a rotina e tentar esquecer que isso está acontecendo.
Eu me sinto aterrorizado quando vejo as notícias sobre terras indígenas sendo invadidas, geleiras derretendo e países em guerra. Parece realmente o fim do mundo, assim como pareceu durante as fases mais pesadas da pandemia. São tantos fins tão próximos que não faço ideia de como começar a lidar com isso. Consigo apenas me refugiar na ideia de que nada acaba de verdade, assim como carrego as memórias dos desenhos, das pessoas e dos animais que me cativaram, escolho acreditar que de alguma forma as coisas vão se renovar e a partir do fim haverá um novo começo. Esse é o tipo de otimismo em que refúgio para não enlouquecer diante do fim. Negar um pouco o significado da palavra, ou simplesmente transferir de fim para pausa. Porque inevitavelmente as coisas sempre continuam, assim como um Ouroboros que amarra o mundo nessa espiral sem o dito fim.