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Barulho

Aqui não há espaço para homens quebrados

AVISO!!!

Esse conto contém descrição de autolesão, por favor não leia se for sensível a esse tema :)


Um som repetitivo ecoa no quarto escuro, nada pode ser visto, mas o som é tão claro que a imagem da sua emissão se mostra com facilidade. É um arranhar, um barulho nítido e limpo de unhas raspando no osso, ou mais especificamente, de pedaços sangrentos das pontas dos dedos já sem carne forçando a superfície do crânio.

O som de um líquido espeço se espalhando pelo colchão completa a cena. Nesse quarto, habitou durante muito tempo um homem que se esforçava ao máximo para se sentir completo, independente de qualquer muleta que pudessem lhe oferecer. Todos os dias ele trabalhava, todos os dias ele estudava, todos os dias ele dava atenção para os seus amigos, passava tempo com sua família, praticava esportes, comia bem e amava sua esposa.

Porém, algo sempre estava faltando. Havia algo ali dentro que nunca deixaria que ele fosse ele mesmo e deixasse que vida fosse simplesmente boa, era a necessidade de preencher um certo vazio.

Ele sabia que esse vaio estava ali dentro em algum lugar e que talvez, se ele o encontrasse, também poderia achar uma forma de preenchê-lo. Assim, alguns anos se passaram e o homem tentava cada vez algo diferente, nos primeiros meses foi a meditação, depois as medicinas alternativas, depois a medicina comum e nada parecia funcionar, os médicos então indicaram que ele participasse de algumas pesquisas para ver se descobriam algo, mas nada mudou e o homem apenas ficava cada vez mais inquieto.

Isso continuou até o momento em que ele desistiu de tentar encontrar ajuda e decidiu que o melhor a se fazer era tentar ignorar por completo o sentimento que o perturbava. Foi então que começou a pior parte do problema, pois o que antes se apresentava como um desânimo, mal humor ou irritação, começou a ter consequências mais sérias. Ele começou a ouvir ruídos e barulhos estranhos quando deitava para dormir. Em diversos momentos do dia ele parava de sentir alguma parte do corpo, como as mãos, os braços ou os pés.

Prolongando essa sensação até o momento em que ele começou a sentir a parte interna da sua cabeça formigar, tal qual uma coceira dentro do cérebro. Eram horas à fio com essa sensação cada vez mais forte permeando a sua consciência junto com um zunido cada vez mais estridente. Foi aí que ele tentou pedir ajuda uma última vez, olhou para o espelho e tentou se encontrar uma última vez... Falhou.

Desapontado ele se sentou em sua cama e começou a coçar a cabeça, primeiro com movimentos esparsos e depois foi tornando o ato cada vez mais robótico, como se já não estivesse mais ali quando seu couro cabeludo se rasgou.

Ele então começou a sentir um pequeno alívio, como se estivesse finalmente coçando aquele lugar profundo o qual não tinha alcance. Então continuou coçando até que o sangue se espalhasse por sua cabeça e por suas mãos até que sua companheira o visse naquele estado quase catatônico de alívio e prazer e lhe deixasse imediatamente. Até que seus filhos já não o reconhecessem mais, com um buraco sangrento e uma expressão de gozo no rosto.

Esse foi o momento em que ele chegou ao osso do crânio, que já se danificava aos poucos com o raspar das unhas. Ele continuou até que elas se quebrassem, até que seus dedos não tivessem mais força. Então apenas trocou de mão, continuou cavando a própria cabeça e assim abriu o crânio. Foi quando a coceira passou, o zumbido parou... E começaram os gritos de desespero e dor.

De repente ele havia acordado daquele transe doentio, finalmente ele sentia algo além do alívio, mas esse sentimento era pior que a própria morte. Era como se o buraco que ele tentava preencher se tornasse algo inteiramente físico e se materializado de sua mente para sua cabeça.

Sua visão se tornava cada vez mais turva, seus pensamentos não faziam mais sentido. Ele apenas se levantou do colchão cheio de sangue seco, abriu a janela e gritou o mais alto que conseguiu.

O homem então se afastou da janela e foi em direção a cozinha, procurando desesperadamente uma faca. Pegou 5 delas, se dirigiu à área de serviço e com um alicate retirou todas as bases, deixando apenas as lâminas. Então colocou todos os móveis no canto da sala e ateou fogo, deixando uma panela grossa em meio as chamas.

Colocou então uma chaleira de água no fogo e ao ferver despejou em cima do buraco na sua cabeça e gritou com todas as forças. Depois pegou a panela com as facas, que já se desfaziam em meio ao fogo e despejou no buraco também, deixando que as facas levemente derretidas o cobrissem enquanto empurrava a massa metálica quente com as mãos.

O ferro retorcido queimou parte da sua cabeça e se alojou dentro do buraco, se mesclando com a pele da forma mais dolorosa possível.

Ele então se levantou com calma, apagou o fogo em sua sala de estar e se dirigiu ao banheiro mais uma vez. Tomou um banho frio, trocou suas roupas ensanguentadas e olhou no espelho novamente. Seus olhos agora pareciam mais humanos, mais reais, mais vivos. Sua expressão transmitia paz e certeza. Podia sentir em seu coração que nunca mais iria conseguir ter um contato verdadeiro com qualquer outra pessoa naquele mundo. Pois estava quebrado de uma forma tão única que jamais haveria um encaixe, ninguém jamais poderia vê-lo e compreendê-lo, assim como ele não sabia fazer antes disso tudo.

Apenas lamentava brevemente sua sentença à solidão e desejava que pelo menos ele tivesse solucionado o próprio problema, talvez a morte pudesse servir como opção, mas não seira mais justo tendo em vista sua posição de satisfação consigo mesmo.

Decidiu então abandonar aquela cidade, atraindo olhares de nojo e curiosidade por onde passava. Foi se enfiar nos recantos mais profundos da sua própria imaginação, perdido em algum lugar das matas que cercam tudo o que há.

Pois aqui não há espaço para homens quebrados.

A natureza do fogo