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Barismo e a cultura do serviço no Brasil

Como se dão as relações entre cliente e barista dentro das cafeterias?

Algo me incomoda muito sobre isso, vestir um uniforme desconfortável, responder diversas dúvidas chatas. Talvez trabalhar com serviço se resuma a isso, não é nada tão complicado de entender, mas fico pensando se isso é de fato uma questão social ou algo interno que eu sinta, até porque trabalhar atrás de uma vitrine cheia de produtos não é exatamente confortável.

Lembro sempre de um cena que aconteceu a uns 3 anos atrás, estava numa roda de conversa e alguém falava sobre subemprego e como se você pesquisar no google a primeira coisa que aparece é a imagem de um barista. Pesquisei agora pra ver se ainda é, e sim, ainda tem um maninho na Starbucks na foto da Wikipédia. Falando nisso, a definição de subemprego de lá é a seguinte:

“Subemprego é a subutilização de um trabalhador, devido a este se sujeitar a um trabalho que não usa suas habilidades, que é de jornada parcial, ou que deixa o trabalhador ocioso.” ¹

Em contrapartida, existem enfoques mais contextualizados, olhando pro subemprego como um fenômeno estrutural do funcionamento econômico, ou seja:

“Segundo Octavio Rodríguez (1972, p.27) o subemprego se refere à “ocupação de amplos contingentes de mão-de-obra em condições de muito baixa produtividade””²

O termo condições de muito baixa produtividade pode ser relativizado aqui, já que não necessariamente é pouco produtivo estar em um subemprego, mas com certeza tem momentos de ócio que acompanham a carga horária.

Basicamente a sensação de não se estar fazendo nada de útil para si mesmo, ou melhor, fazendo algo sem qualquer tipo de impacto reconhecido na vida de ninguém.

Sinto que é uma sensação particular do capitalismo, onde o valor do tempo e do trabalho são relativizados em prol do lucro em cima de grandes grupos de pessoas. É estrutural, algo planejado e essencial dentro do funcionamento da sociedade, ou melhor, do mercado de trabalho brasileiro. 

A explicação pra isso é histórica, não precisa ir muito longe pra enxergar que o trabalho no Brasil, principalmente aqueles que envolvem serviço, ainda segue uma estrutura muito similar aos tempos da escravidão.

Mesmo que tenhamos dissociado um pouco a ideia do trabalho forçado, qualquer tipo de relação trabalhista ainda carrega uma carga de subordinação que vai além de hierarquia. É como se o vínculo trabalhista (seja ele formal ou informal) viesse sempre junto a uma carga de submissão à quem se está servindo.

Por conta disso também é tão desgastante trabalhar com atendimento quando não se tem autonomia o suficiente para se posicionar de forma assertiva quando surge alguma situação desconfortável. Um bom exemplo disso é o conflito entre as expectativas do cliente e o que a cafeteria oferece. 

No ramo do café especial é comum ter que educar o cliente, coisas como: o que é o café especial? Como funciona a produção de café no Brasil? E principalmente: o que torna esse café diferente?

São coisas corriqueiras que qualquer barista já está bem acostumado a responder. Contudo, ainda se tem um pensamento bem comum de como deveria ser uma cafeteria, gerando todo o tipo de confusão quando tem que se explicar por que não servimos refrigerante, por que não tem torrada ou por que esse vocês estão servindo esse chafé? E qualquer outra coisa que o cliente imagine que se sirva em uma cafeteria.

Existem níveis disso, é claro. Pra mim a situação mais cômica foi um cliente que insistia que fizéssemos uma crepióca para ele com a justificativa de que ele tinha ido em outra cafeteria e tinham feito. Falei que não tínhamos como fazer, mas haviam diversas outras opções no cardápio, ele e o grupo de amigos saíram muito ofendidos por não termos feito a tal da crepióca (não tínhamos nem ingredientes pra fazer isso). Não sei se é um problema do cliente portoalegrense, mas definitivamente existem muitos casos assim nas cafeterias. Em outras palavras, se você não tem seja lá o que for que o cliente espera que você tenha, existem muitas chances de que ele não saiba lidar com isso e trate mal seja lá quem for que o esteja atendendo.

Quis escrever esse texto pra ver se eu encontrava uma explicação melhor pra esse tipo de comportamento, e sinto que a resposta seja algo cultural: como nos comportamos quando estamos recebendo um serviço e como comunicamos as expectativas que temos sobre ele. É algo bem complicado e bem simples ao mesmo tempo.

De forma mais simplificada, esse fenômeno pode ser justificado pela falta de prestigio social que cargos de serviço e trabalhos manuais tem no Brasil, como serventes, cozinheiros, baristas, garçons e assim por diante, tendem a receber bem menos do que outras profissões, por mais que se especialize nesses ramos.

Contudo, quando exploramos um pouco mais à fundo essa questão, pode-se perceber que até o século 19 esses eram trabalhos relegados às pessoas escravizadas. Esse padrão apenas evoluiu com o passar do tempo, se tornando hoje, em toda a América Latina, uma parte estrutural da formação do estado, em outras palavras. 

O mercado de trabalho no Brasil (e em qualquer lugar onde houve trabalho escravo em algum momento) acaba levando à diante os moldes feitos na época da escravidão através da precarização do trabalho e da informalidade. Formando o estado de subemprego (estrutural) que Bruno Soares (UFU) relaciona com as economias de baixa produtividade, ou em suas palavras:

“Nesse sentido, cabe-se entender que os processos de industrialização brasileiro e mexicano sofrem com uma heterogeneidade estrutural que é fruto da herança colonial e é marcado pela expansão das economias de baixa produtividade entre os séculos XVII e XIX, situação que os trabalhadores excedentes gerados - já vinculados ao subemprego - ajudaram a manter durante a transição para o período de assalariamento.” ³

Enfim, entender como os contingentes de trabalhadores foram estratificados em profissões de maior ou menor prestigio, normalizando certos comportamentos abusivos com determinados tipos de profissão (geralmente com serviço) não algo simples. Mas ajuda um pouco saber que não é uma situação particular nem um problema isolado, mas sim um projeto político e econômico que acompanha o Brasil desde sua formação.

Não posso dizer que cheguei a uma conclusão com isso tudo, mas sinto que é importante pensar e colocar essas questões em pauta para saber o que podemos esperar de determinados ramos, e principalmente entender as disparidades que pautam as relações de serviço no Brasil. Se não para fazer algo sobre, simplesmente para ter um entendimento maior sobre o ambiente que habitamos como baristas.


Escrito por Eduardo Mendez - Rouxinol

Referências:

1 -  Wikipédia, acessado em: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Subemprego

2 - Subemprego Estrutural: a formação do mercado de trabalho na América Latina Soier, Bruno Soares

3 - Superpopulação relativa e a formação do mercado de trabalho assalariado: uma análise comparada entre Argentina, Brasil e México - Soier, Bruno Soares 

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